domingo, 22 de janeiro de 2012

REESCREVENDO A HISTÓRIA: "O Império Romano não acabou em 476", afirma historiador


O professor Chris Wickham, do Departamento de História da Universidade de Oxford, é hoje um dos mais respeitados estudiosos da chamada Antiguidade Tardia, período que marca a passagem da Era Clássica para a Idade Média. E determinar as diferenças entre esses dois mundos é a grande questão que orienta suas pesquisas.

Em 2005, ele apresentou o resultado de suas investigações em um livro que causou grande impacto entre os especialistas da área: Framing the Early Middle Ages: Europe and the Mediterranean, 400-800 (Enquadrando a Alta Idade Média: A Europa e o Mediterrâneo, 400-800, inédito no Brasil).

Wickham: “A mudança para uma forma de governo 'medieval' foi um processo muito mais lento do que os historiadores pensavam há 50 anos”.
(Foto: Phil Sayer/Univerdidade de Oxford)

Na obra, Wickham analisa as diferentes transformações pelas quais as várias províncias do Império Romano passaram entre os anos 400 e 800 para buscar novas respostas para uma velha pergunta que os historiadores se fazem desde o século XVIII: quando termina a Antiguidade clássica e quando começa a Idade Média?

Ao comparar a estrutura socioeconômica, o sistema de arrecadação de impostos e as formas de governo que vigoraram na Europa e no Mediterrâneo ao longo de quatro séculos, ele chega a uma conclusão que questiona a periodização apresentada pela maioria dos livros didáticos: segundo ele, o Império Romano não acabou em 476. Ele explica por que nesta entrevista exclusiva para História Viva.

História Viva – A maioria dos livros didáticos apresenta o ano de 476 como um marco para o fim da Antiguidade e o início da Idade Média. O senhor concorda com essa periodização?

CHRIS WICKHAM – Não, eu discordo por dois motivos. Em primeiro lugar, porque o ano de 476 é a data da queda do último soberano do Ocidente, mas o Império Romano continuou a existir, sem ruptura. A única diferença é que sua capital passou a ser Constantinopla.

No século VI, os imperadores romanos do Oriente continuavam a governar em um estilo muito parecido com o de Constantino no século IV ou mesmo dos imperadores pré-cristãos. Um imperador como Justiniano, que governou entre 527 e 565, tinha basicamente o mesmo estilo de seus antecessores dos cinco séculos anteriores. Além disso, ele governou pelo menos metade do antigo Império Romano do Ocidente, porque reconquistou regiões como a Itália, o norte da África e o sul da Espanha.

Em segundo lugar, não há dúvida de que o fim do século V assistiu à substituição do poder romano nas províncias ocidentais pelo de reis que comandavam exércitos formados por grupos germânicos vindos de fora do império. No entanto, mesmo não se autodenominando romanos, muitos desses monarcas continuaram a governar ao estilo romano.

A mudança para uma forma diferente, que poderia ser chamada de “medieval”, foi um processo muito mais lento do que os historiadores por muito tempo pensaram e não aconteceu em um ano, uma década ou mesmo um século. Eu vejo uma lenta mudança nas províncias do Ocidente, que vai de 450 a 600, aproximadamente. A partir de então, todo o mundo europeu pode ser chamado tranquilamente de “medieval”, com exceção das regiões que permaneceram sob o controle direto do Império Romano do Oriente.

HV – O senhor afirma que essa mudança é marcada por uma transformação do sistema de arrecadação de impostos. Como isso ajuda a diferenciar o mundo antigo do medieval?

WICKHAM – No Império Romano, o poder público – exército, sistema judiciário etc. – era financiado pela arrecadação de impostos, como acontece hoje. A coisa mais cara na época do Baixo Império Romano era o exército. E quando as tribos germânicas conquistaram as diferentes províncias do Ocidente eles passaram a financiar o exército de uma maneira diferente. Na maioria dos casos, eles davam terra aos soldados, em vez de lhes pagar com dinheiro. A ideia de um exército assalariado, portanto, desapareceu, o que acabou com a necessidade de cobrar impostos da população.

Isso é parte daquele lento processo que eu mencionei: os reis queriam cobrar impostos, porque todo governante gosta de ter muito dinheiro, mas, quando você não tem de pagar o exército, que consome 60% do orçamento público, os impostos se tornam menos necessários. Quando isso acontece, você não precisa de tantos oficiais e burocratas para organizar o sistema de arrecadação, e há uma lenta involução no grau de complexidade do Estado. Esse processo está quase concluído por volta de 600. Então eu acho que o financiamento do exército é uma das mudanças cruciais que aconteceram nesse período.

A civilização dos césares não desapareceu com os ataques dos povos germânicos, mas as invasões bárbaras marcaram o início de uma profunda transformação política e social da Europa. (Imagem: Museu Nacional Ulpiano Checa, Colmenar de Oreja)

HV – Como podemos interpretar as invasões bárbaras a partir dessa nova perspectiva do fim do Império Romano?

WICKHAM – As invasões bárbaras claramente aconteceram. Quando você tem um rei da Espanha que se autodenomina rei dos godos, ele é o líder de um povo que invadiu o império. E não há problema em dizer isso. Mas o rei dos godos poderia ter criado um sistema de governo mais próximo do romano. Ele poderia ter dito “eu tenho esse exército godo, eu vou remunerá-lo da forma que os romanos fazem, vou manter 100% do sistema econômico romano”. Os ostrogodos ainda fizeram isso na Itália por 40 anos, mas nenhum outro rei bárbaro tentou manter esse sistema, o que é muito significativo, pois mostra que o mundo pós-romano é diferente do romano.

É bem diferente do que aconteceu na China: todas as vezes que os bárbaros invadiram a China – o que ocorreu nos séculos III, VI, XI, XII, XIII – eles preservaram as formas de organização do Estado chinês e adotaram o estilo tradicional de governo. Assim, o Estado chinês mudou bastante ao longo do tempo, mas nunca se desintegrou. A via chinesa mostra, portanto, que, mesmo com invasões bárbaras, pode haver uma continuidade estrutural de uma determinada forma de Estado. É a descontinuidade que marca o Ocidente romano.

HV – A mudança no Ocidente romano, portanto, pode ser descrita como a passagem de um único Estado centralizado para um conjunto fragmentário de Estados?

WICKHAM – Exatamente.

Em pleno século VI, o imperador Justiniano governou pelo menos metade das antigas províncias do Ocidente. (Imagem: Basílica de São Vital, Ravena)

HV – Por outro lado, alguns historiadores, como o francês Jean Durliat, defendem uma continuidade do Baixo Império Romano até o fim do século IX. O que o senhor acha dessa tese, que se opõe à ideia da ruptura total?

WICKHAM – Eu acho que Jean Duliart está completamente enganado. É interessante, no entanto, que ele defenda a continuidade usando o mesmo tipo de argumento que eu mencionei. Ele argumenta que o sistema de arrecadação de impostos se manteve após a queda do Império Romano do Ocidente, o que é uma linha de pensamento útil, mas eu acho que ele lê as fontes de forma totalmente errada. Ele cria uma série de razões para se acreditar que as fontes que todos os outros pesquisadores acreditam tratar da posse da terra se referem, na verdade, à arrecadação de impostos. E ele não conseguiu provar isso. Eu acho que todos os elementos da sua argumentação podem ser considerados imprecisos, mas eu respeito a forma como ele argumenta.

HV – Então, apesar das mudanças de interpretação das fontes, nós ainda podemos falar da queda do Império Romano do Ocidente e das invasões bárbaras?

WICKHAM – Sim, podemos. Mas é um processo muito mais lento do que os historiadores pensavam há 50 anos.

Fonte: História Viva
Editado por: Hugo Freitas

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